"Percebi que o regime de Ianukovitch estava condenado e era uma questão de tempo"
O que o levou a ir para as ruas da Ucrânia e fazer algo diferente do que as televisões estavam a mostrar. Como é que o filme começou a aparecer na sua mente?
Cheguei a Kiev [capital da Ucrânia] a 14 de dezembro de 2013. Não podia ter ido mais cedo porque tinha um prazo para terminar um curto documentário para o filme coletivo sobre Sarajevo. Trouxe a minha câmara e filmei quase sem parar durante todo o tempo em que estive lá - cerca de uma semana. Comecei a procurar um operador de câmara que pudesse continuar o meu trabalho, uma vez que tinha de regressar no final de dezembro, e foi difícil de prever, nessa altura, quanto tempo demoraria o regime a cair. No entanto, era óbvio para mim desde o início que este não era apenas um acesso de agitação popular temporário que se iria acalmar com poucas consequências. Percebi que o regime de [Viktor] Ianukovich estava condenado e que era só uma questão de tempo... Tive a sorte de conhecer um jovem operador de câmara muito talentoso, Sergei Stetsenko, que continuou a filmar durante janeiro e fevereiro. Comecei a montar o filme no final de janeiro e estava a construí-lo quase em tempo real à medida que os acontecimentos se desenrolavam. No que diz respeito à sua pergunta sobre fazer algo "diferente da televisão", a resposta é muito simples: fiz 15 documentários até agora e nunca trabalhei para a televisão. Sou um cineasta. Faço cinema.
Era apenas um observador ou pensou tomar parte na luta?
Estive lá apenas em dezembro e não houve combates nessa altura. No entanto, é impossível ser um cineasta e um manifestante de rua ao mesmo tempo. Fui para a Praça da Independência [hoje Maidan] como cineasta - para observar e registar os acontecimentos. Claro que me senti emocionado e que senti uma lealdade muito forte em relação a um dos lados do conflito, mas isso não tem de interferir com o meu trabalho. O meu operador de câmara, que estava na praça durante os protestos, também teve de se abster de qualquer atividade enquanto estava a filmar. Na verdade, houve momentos em que ele foi para a praça como manifestante, sem a câmara, e dias em que foi como diretor de fotografia, com a sua câmara.
Em 'A Praça' não procurou um julgamento moral para as questões em jogo. De que forma as opções de filmagem expressam essa escolha?
Não me compete fazer um "julgamento moral". Cabe-me formular uma ideia, contar uma história e apresentar ao espectador uma experiência sobre a qual ele ou ela é livre para refletir e tirar as suas próprias conclusões.
Todos os que estiveram na Praça da Independência sentiram uma necessidade de mudança. Como aconteceu também no Egito, na Turquia ou no Brasil... O que acha que está a levar as pessoas a sair à rua?
No caso da Ucrânia, estávamos a lidar com três revoluções em uma: a revolução anticorrupção, a revolução antissoviética e a revolução anticolonial. As pessoas foram para a rua porque não podiam tolerar o regime corrupto e criminoso do presidente [pró-russo] Ianukovich por mais tempo. O regime de Ianukovich era parte integrante do antigo sistema soviético e da mentalidade soviética, em que os direitos e as liberdades de um indivíduo foram completamente negligenciados ou suprimidos, e em que a elite dominante não era responsável pelas suas ações. O regime também era fortemente dependente do Kremlin e, ainda que a Ucrânia se tenha tornado oficialmente independente da União Soviética há 25 anos, a dependência da Rússia e o domínio da Rússia em todas as grandes esferas da economia e da política ainda eram enormes. E só agora, depois da revolução da Praça da Indepen-dência, é que a nação ucraniana começou a redescobrir a sua identidade e está a tentar escolher o seu próprio destino político. Pelo menos, esta é a intenção do povo ucraniano. E é exatamente por isso que a revolução ucraniana provocou uma reação tão agressiva e brutal na Rússia. Vai ser necessário muita coragem, muita vontade política e muita determinação na liderança ucraniana e das pessoas para superar o conflito e defender o seu direito à liberdade. No entanto, acredito que o futuro da Ucrânia é com a Europa.
No filme 'O Cerco de Leninegrado', tinha imagens de arquivo. Aqui captou-as. Quão próximos podem ser esses filmes?
De facto, há semelhanças entre os dois filmes. Tem sobretudo que ver com a estrutura e com a forma como desenvolvi a narrativa, em que cada nova cena faz avançar a história. Ambos os filmes lidam com grandes acontecimentos históricos, no entanto, em 'O Cerco de Leninegrado' o foco é a cidade como uma entidade, em vez do povo, enquanto o protagonista de A Praça é o povo ucraniano.
Regressa às suas raízes documentais em 'A Praça'. O que constitui para si um maior desafio: ficção ou não ficção?
Continuo a trabalhar em ambos os géneros. Acho que eles se complementam. Tanto o documentário como a ficção estimulam-me e inspiram-me. A diferença entre eles reside, em primeiro lugar e principalmente, na esfera da ética, em vez da estética.
Em 'A Praç'a não procurou um julgamento moral sobre as questões em jogo. De que forma as opções de filmagem expressam isso?
Não me compete fazer um "julgamento moral". Cabe-me é formular uma ideia, contar uma história e apresentar ao espectador uma experiência, sobre a qual ele ou ela é livre para refletir e tirar suas próprias conclusões.
Na senda de Godard, poder-se-ia dizer que A Praça é uma espécie de film socialisme, na medida em que nos mostra as massas, as pessoas anónimas, não escolhendo protagonistas. De certa maneira, os ucranianos são aqui um protagonista coletivo ...
Absolutamente. O povo ucraniano é o principal protagonista do filme. No entanto, acho que o estilo do filme é um pouco diferente se fôssemos compará-lo com as recentes obras de Godard. Ele agora está a fazer experiências com a linguagem do cinema e a alcançar novas fronteiras da abstração. Eu diria que Godard está agora a tentar fazer com o cinema o que os modernistas e pintores abstratos fizeram com a arte há cerca de cem anos. A minha tarefa em A Praça foi bastante diferente.
(Entrevista feita por e-mail)